mão na música

4.10.11


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a música é tamanha, cabe em qualquer medida...

Na sua mão sobe o ar ao infinito, de lá treme. A música por um lado vê-se, por outro não se vê. Nada da música se improvisa por acaso. A música corre nas gargantas e pode ser tocada com um só dedo. A música mostra-se feia para os seus pares e bela para os seus ímpares. A música emudece por vezes os cantores e deixa-os a sós nos camarins à espera do amigo do carrasco. A música não é a mesma quando ouvida de longe ou quando ouvida de perto. A música não tem explicações a dar a si mesma. Isso explica tudo. A música dá asas a quem voa, a quem tem asas para voar. A música faz aos poemas aquilo que os poemas quiseram fazer dela: render-se. E aos outros propõem; rendam-se. Tréguas e batalhas sem ordem de aviso.

A musica referenda a liberdade? Sim ou não? A música depende de um botão da liberdade e desunha-se a mostrar os efeitos de num dedo a voz humana. A musica faz orelha moucas. A música não se esquece no silêncio, por isso nos lembramos dela. Permanece em mais que um som. A música vai por vezes mais alto e de uma torre afunda o eco no centro da terra. A música aguenta-se de pé, dorme sentada, dança e escorrega na cama. A música pausa e pausa, faz das malas a viagem mas se acena, já de longe, a música atira os seus poemas ao mar e recebe-os nas ondas do dia seguinte, nas garrafas outro povo. A música perdeu muitos bons poemas no vento contrário, quem sabe era bons. A música é uma cópia de uma cópia, cara aberta vai ao fundo e vem à tona por respiração. A música é uma revolução de estilos, é do passarinho herdeira orfã. A música é orfã. Quando nasceu os seus pais tinham morrido há pouco. É orfã. 

A música esfrega os dedos em tudo o que der som. A música nunca teve em si mesma uma moral, pensa que não pensa e que não perdura. Diz-se que faz muito bem ouvi-la alguém que pense e que perdure por ela. A música não tem barreiras mas o amor por ela, sim. A música prepara-se, destroçada, mas vaidosa para confessar tudo ao cair do sol. A música chora e ri ao mesmo tempo, uma criança por razões não exactamente compreensíveis. A música quer ser perfeita, sempre que por escolha é imperfeita. Por talento dá-se a todas a bondade, a presunção, ressentimento e mais não fosse a quatro tempos. A música de repente é a mesma nota repetida e outras vezes. A música mede-se com caneta e gravador. É maior e é menor. A música quando se encontra já lá está. A música nasceu antes de nós termos nascido com ela. A música segue a sua sombra e pela sombra é fácil, não há espelho. Ou é ritmo ou é pausa. Ambos dúbios mas reconhecíveis.

A música é feita à janela e aberta vê-se da rua. A música eriça-se ao menor vento, arranha-se a si mesma, ladra ao ar, risca a terra. Gosta mesmo. A música quando a chuva cai com barulho de entre as nuvens vê-se o mar em dia de acalmia o que não é explicável nem por norma nem por excepção dos deuses. Digamos que são os sons em dia de ofertório. A música vai de rio e desagua. Aquece a água doce, rebenta no mar salgado, larga os seus bichos no mar. A música tem duas mãos, é tocada com um só peito, um só dedo. Da música sobe o ar ao infinito. A música tem um só dedo e um só dedo. A música tem um só dedo e um só dedo. Nada da música se improvisa por acaso.
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(Sérgio Godinho)
Esta beleza pode ouvir-se aqui.
Uma definição linda, clara do muito que a música é e não é.


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